Por José Eli da Veiga
Do Valor Econômico
Há três motivos para que o jogo
da roleta russa seja ótima metáfora para caracterizar a revogação do
quase-cinquentão "Novo Código Florestal": um precedente, o processo
decisório, e, sobretudo, as consequências, que em grande parte sobrarão para os
agricultores.
O precedente não deveria ser tão
desconhecido. Há cinco anos os legisladores da Rússia ignoraram os pareceres
científicos contrários ao relaxamento das regras de conservação que até então
haviam garantido a proteção das florestas de seus imensos biomas. Lá como aqui,
o presidencialismo de coalizão não deu bola para a séria advertência dos
pesquisadores: reduzir a cobertura florestal iria perturbar o ciclo
hidrológico, aumentando secas drásticas e a frequência de outros eventos
climáticos extremos.
A imprudente nova lei foi
promulgada sem vetos pelo presidente Vladimir Putin. Então, por incrível que
pareça, bastaram cinco anos para que o país fosse assolado por inédita onda de
incêndios, que tornou o ar de Moscou quase irrespirável, gerando pânico sobre a
possibilidade de imenso incêndio metropolitano. Simultaneamente foram afetadas
as colheitas, com perda de um quinto na de trigo.
Será catastrófico o indulto aos
desmatamentos de APP de beira-rio em imóveis rurais de até 15 módulos.
Tão ou mais importante é
registrar que não foram necessários mais do que esses cinco anos para que a
mídia russa passasse a tratar de "profetas" os cientistas que haviam
alertado para os riscos de retrocessos na preservação florestal. Narrativa mais
detalhada sobre tão arrepiante presságio fecha o ótimo ensaio do jornalista
Leão Serva para o livreto Análise, publicado em março pelo WWF-Brasil:
"Congresso brasileiro vai anistiar redução de florestas em pleno século
XXI?"
Em quanto tempo também serão
consideradas proféticas as manifestações conjuntas da Academia Brasileira de
Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
sobre os temerários retrocessos aprovados pela Câmara em 24 de maio, e pelo
Senado em 6 de dezembro? Quanto tempo será exigido para que se tornem profecias
os conteúdos do livro "Código Florestal e a Ciência; Contribuições para o
Diálogo" e de sua brochura complementar "O que nossos legisladores
ainda precisam saber"?
Ou será que, para o bem de todos
e felicidade geral da nação, essa sombra do exemplo russo poderia ajudar a
presidente Dilma Rousseff a evitar erro tão grave e primário quanto o de Putin?
O segundo motivo para a metáfora
da roleta russa está nos procedimentos do processo decisório que levará à
revogação do Código. Com realce para o principal expediente anti-democrático
que está sendo usado por representantes da especulação fundiária na Câmara
contra seus pares, que ofende a opinião pública: só apresentar o relatório a
ser votado às vésperas da decisão. Existirá algum outro parlamento que aceite
ser constrangido a se pronunciar sobre matéria tão complexa sem que tenha
havido tempo para cuidadoso exame do texto que será submetido à votação?
Foi exatamente o que ocorreu na
Câmara em 24 de maio, quando muitos deputados votaram a favor de projeto que
agora chamam de "monstrengo". E não foi diferente no Senado em 6 de
dezembro, quando um equivocado rolo compressor impediu que se desse a devida
atenção a três preocupações básicas e de bom-senso: a) não consolidar invasões
de áreas de preservação permanente (APP) por simulacros de pastagens; b) não
passar por cima da Lei de Crimes Ambientais (9.605 de 12/02/1998), c) nem
ignorar a Lei da Agricultura Familiar (11.326 de 24/07/2006).
Catastrófico agravante será a
confirmação do furo da "Folha de S. Paulo" de sábado (14 de abril): o
indulto aos desmatamentos de APP de beira-rio poderia abranger todos os imóveis
rurais de até 15 módulos. Como eles ocupam cerca de metade da área total dos
imóveis rurais, seriam uns 280 milhões de hectares, dos quais apenas 80 milhões
estão com agricultores familiares.
O terceiro e mais dramático
motivo para se evocar a roleta russa tem a ver com as consequências práticas da
revogação do "Novo Código Florestal de 1965" por lei cujo principal
efeito será um amplo e irrestrito respaldo aos especuladores fundiários. Se o
grosso dos produtores agrícolas está dando entusiástico apoio à demagogia de
pretensas lideranças ruralistas é porque considera os fiscais do Ibama muito
piores que satanás. Esses incautos agricultores estão supondo que a aprovação
do novo monstrengo os livrará das dores de cabeça sobre o que fazer em APP, ou
sobre o respeito à reserva legal (RL). Ledo engano. Se conhecessem o
substitutivo do Senado, assim como algumas das emendas que serão propostas pelo
misterioso relatório à Câmara, perceberiam que não haverá advogados suficientes
para que tentem se defender de sanções por eventuais suspeitas de
irregularidades.
Em suma: a incrível ironia da
história é que os verdadeiros agricultores já deveriam estar torcendo para que
seja bem arguida junto ao STF a inconstitucionalidade desse novo mostrengo que
os deputados federais estão prestes a aprovar, mais uma vez de olhos vendados.
Alguns de nariz tapado.
José Eli da Veiga, professor dos
programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP
(IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ)
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